Eufrázia Cristina Menezes Santos
(Texto publicado no Jornal da Cidade, Aracaju, 29 de junho de 2012. Caderno B-6, Coluna Opinião)
Durante
o mês de junho, o público aracajuano presente às exibições de quadrilha junina ocorridas
nos concursos organizados tanto pelo Estado quanto por empresas particulares pôde
apreciar diferentes estilos e formatos afiliados a um mesmo gênero, o que nos
leva a pensar ser mais coerente referir-se a quadrilhas juninas, no plural. O emprego do singular poderia suscitar
a insustentável ideia de que haveria um padrão ou modelo irretocável da dança a ser universalmente seguido. No
plano da arte popular, tais padrões, quando existem, ao contrário de permanecerem
inalterados, são fortemente tributários de um núcleo histórico, refletem o
espírito de uma época, e movimentam-se dentro de um quadro de forças bem
específico. Nessa imensa engrenagem, posta em marcha pela engenharia social, enquanto
alguns elementos poderão ser abandonados, esquecidos, outros serão acrescentados ou
modulados pelo gigantesco processo de criação coletiva. As formas culturais, como
explica o sociólogo Stuart Hall, não podem ser pensadas “como algo inteiro e
coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas”. Na realidade,
elas são profundamente contraditórias e interagem com diferentes contextos. Considere-se,
por exemplo, o processo de reconfiguração das quadrilhas no continente europeu e
posteriormente em terras brasileiras. Antes de ser absorvida pelo ciclo junino
no Brasil e assumir um caráter popular, a quadrilha fora uma dança de salão de natureza
protocolar apreciada pela elite imperial,
com origem na contradança francesa, que, por sua vez, derivaria da dança campestre
inglesa. De acordo com o folclorista Câmara Cascudo, as mudanças orquestradas
pelo povo variaram ao sabor das tradições culturais locais, a exemplo das
adaptações dos termos franceses feitas pelos marcadores das quadrilhas
populares. Nossos compositores, por seu turno,
conferiram-lhe um acentuado sabor brasileiro. Da matriz francesa derivaram outros
tipos: a quadrilha caipira no interior de São Paulo, a saruê no Brasil Central,
e a mana chica em Campos .
O
processo de reinvenção da dança se estendeu ao longo de todo o século XX, e
continua ativo nos dias que correm. As quadrilhas juninas, ao passo que perdiam
gradativamente seus traços de baile rural, de dança comunitária, iam adquirindo
uma dimensão mais urbanizada e espetacular.
Diante
desse quadro, como classificá-las hoje: em tradicionais ou modernas? Autêntica
ou inautênticas? Ou recorrendo a qualquer outro par de adjetivos semanticamente
opostos? Quem
seriam os ganhadores e perdedores nesse jogo das identidades? Quais grupos
estariam sendo incluidos/excluidos com base em categorizações excludentes?
No contexto dos
concursos, a dança, que surge como elemento predominante em algumas quadrilhas,
é secundarizada em outras pelos aspectos dramáticos e teatrais. Há ainda aquelas
que privilegiam os elementos visuais e plásticos na apresentação. Nesse sentido,
os múltiplos significados das quadrilhas não estão inscritos na sua forma. O surpreendente
hoje poderá tornar-se rotineiro amanhã: a novidade do presente será ultrapassada pela moda do ano vindouro. Esteticamente,
cada um desses elementos, ou sua combinação, produz efeitos artísticos
específicos cujo objetivo é impressionar, suscitar emoções e interações naqueles
que assistem aos espetáculos produzidos (coreográfico, musical, teatral ou
estético) ou nos que deles participam. Ressalte-se, todavia, que a
preponderância de um elemento não impede que os demais integrem o conjunto da
cena. Na realidade, esses rearranjos informam também as escolhas estéticas,
culturais e políticas efetuadas por cada grupo. A exemplo de outras manifestações
culturais, prevalece entre os grupos de quadrilhas o gosto pela novidade, pela invenção e pelo artifício.
Seria
possível manter essas ações sob controle?
Acreditamos que não.
A festa de São João sempre ensejou a formação
de vários tipos de quadrilhas com perfis diferenciados: quadrilhas escolares,
de família, de vizinhos, de amigos. Nesse contexto festivo, a formação de uma quadrilha pode ocorrer
de maneira espontânea ou improvisada, por razões puramente lúdicas, evocando o
sentido da festa enquanto divertimento gratuito à margem da rotina e do
cotidiano. As quadrilhas improvisadas podem surgir nos arraiais de bairro, em
festas de rua, nos condomínios residenciais, ou em qualquer outro espaço que
favoreça esse tipo de formação temporária. Portanto, qualquer tipo de
generalização inviabiliza a compreensão mais
rica dessa dança coletiva cujas
expressões não se encontram
circunscritas à esfera dos certames organizados no período junino
É verdade que a
promoção de concursos de quadrilhas tem contribuído para afirmar o caráter
espetacular das apresentações públicas, estimulando um formato de quadrilha
mais urbana, competitiva e estilizada, voltada para a conquista de títulos e
prêmios. Mas esse aspecto por si só não explica o processo de reconfiguração
das quadrilhas juninas. Seria interessante, nesse ponto específico, relativizar
a ideia de competição, não se fixando apenas no sentido estrito do termo, uma vez
que esses concursos nao perdem de todo a
ludicidade, nem o desejo da vitória chega eliminá-la. Os quadrilheiros,
portanto, acabam conseguindo combinar a essência do espírito ludico - “ousar,
correr riscos, suportar a incerteza e a tensão”- com as ideias de competição - luta,
exercício, aplicação, resistência e sofrimento. Não obstante, ao sentido de
brincadeira que a execução desta dança coletiva pode encerrar, devem-se somar as motivações de ordem material
( conquista de prêmios em dinheiro e títulos) e subjetiva ( conquistar a
vitória, obter prestígio e
reconhecimento).
Se,
por um lado, é verdade que os quadrilheiros, enquanto produtores de cultura, conseguem
efetuar suas escolhas estéticas e dialogar com a sociedade do espetáculo, por
outro, o público avalia diversamente o quanto lhe é apresentado, sem concessões
à unanimidade. Lembremos, ademais, que a quadrilha não se desenvolve sob um olhar
passivo do público, que, ao contrário, formula avaliações coletivas e
individuais a cada apresentação, fazendo-as circular rapidamente entre os
quadrilheiros, nas conversas informais e, mais recentemente, nas redes sociais.
Apesar da força dos grandes concursos,
promovidos pelas duas maiores emissoras de televisão, para determinar
tendências, modismos ou até mesmo estimular uniformização a partir de um modelo
hegemônico de apresentação que privilegia cenários, efeitos especiais,
acrobacia, etc., esse processo de homogeneização dificilmente se efetiva por completo
no plano da cultura. O São João e as quadrilhas juninas não são fenômenos
simples e de sentido único. O
processo de elaboração coletiva acionado em diferentes contextos históricos
revela as marcas impostas por cada época às expressões da vida coletiva.